Texto publicado na coluna de David Coimbra na Zero Hora de 15/10.
Lá pelo fim dos anos 20 do século 20, Freud concebeu um livro genial, dentre tantos de seus livros geniais: O Futuro de uma Ilusão, um estudo sobre como a religião é subproduto da Civilização.
Freud discorre acerca do desamparo do ser humano diante das forças da Natureza. Como o homem, tornado adulto, descobre que será sempre uma criança à mercê dos poderes estranhos que o cercam e o ameaçam: um milheiro de doenças, intempéries de verão e inverno, acidentes surpreendentes. Desesperado em busca de proteção, sabedor de que essa proteção não virá da sociedade que o cerca, o homem se volta para aquela figura plena de força que, durante a sua infância, ele ao mesmo tempo temia e ansiava para que o salvasse de todo o mal: o pai. Indefeso em meio aos perigos do mundo, o homem precisa crer na existência de alguma entidade que o defenda e o oriente, e volta e meia o puna, como fazia seu pai. Espelhado no que o pai lhe representava quando criança, o homem cria o seu deus: onipotente, amoroso, porém duro.
O texto de Freud demonstra que, quando a Civilização é ineficaz para proteger o homem com suas ferramentas tradicionais, a ciência, a tecnologia, as leis, o homem apela para a religião.
A premissa contrária é verdadeira. Quando os instrumentos da Civilização funcionam, a religião perde prestígio. Em países onde a Civilização atingiu os níveis mais avançados, como a Alemanha e a Inglaterra, grande parte da população flutua com serenidade no ateísmo, no agnosticismo ou na singela indiferença ao transcendental. Ingleses e alemães estão cada vez mais distantes dos deuses. Porque não precisam deles.
Agora mesmo, chamou-me a atenção que foi ela, a Civilização, a festejada no resgate dos mineiros soterrados no deserto de Atacama. Assim que um resgatado brotava da terra e saía da cápsula, ele e os outros que o esperavam na superfície, o que eles faziam? Eles não se ajoelhavam e rezavam, com talvez uma única exceção. Eles não erguiam as mãos para o Céu protetor. Não. A maioria deles gritava:
– Chi-chi-chi! Lê-lê-lê!
Chile. Gritavam o nome do país. Quer dizer: celebravam o Estado que teve interesse em salvá-los e, tendo interesse, investiu nisso, financiou o que há de mais sofisticado em ciência e tecnologia, e criou condições para o resgate bem-sucedido. Ciência e tecnologia. Recursos da Civilização.
Os chilenos, ao entoar o nome de seu país, estavam louvando a Civilização.
Ao mesmo tempo, aqui, no Brasil, transcorre o segundo turno das eleições presidenciais, e a democracia também é um instrumento requintado da Civilização. Mas qual é o maior debate deste segundo turno? O que se cobra dos candidatos a presidente do Brasil e do que eles falam dia após dia?
Do aborto.
De religião.
Essa é a civilização brasileira. Esse é o futuro de uma ilusão.
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ResponderExcluirLer a opinião sobre o avanço das civilizações e a sua libertação dos estigmas herdados, quando se trata de religião, me lembrou de um debate que ocorreu esse mês entre os irmãos Hitchens, moderado pelo Michael Cromartie.
ResponderExcluir“People meant what they said when they said the word Christendom. There was a Christian world. Partly evolved, partly carved out by the sword, partly defended by the sword, giving way and expanding at times. But it was a meaningful name for a community of belief and value that endured for many, many centuries. It had many splendors to its name, but it’s all gone now...huge parts of what we might call the industrialized modern world, tens of millions of people live in a post-religious society. It’s hard to argue that they lead conspicuously less civilized lives than their predecessor generations.” Christopher Hitchens